Até o outro lado
Última modificação: 06/05/2020
Hoje, um amigo morreu. Não sei se posso chamá-lo de amigo; Para falar a verdade, éramos conhecidos da internet. Trocávamos figurinhas sobre alguns assuntos e fazíamos algumas piadas para passar o tempo, nada muito íntimo, mas nada muito hostil também. O que nos aproximou, mesmo que ainda houvesse uma certa distância, era o interesse em vários assuntos semelhantes. Assuntos que se referiam as pessoas com deficiência, assuntos de tecnologia que poderiam facilitar a vida de pessoas cegas. Cada um tem sua experiência, alguém da uma idéia ali, outro um pitaco lá. De pouco em pouco a gente passa a informação para os outros, tira dúvidas e faz amigos, conhecidos, conhecidos da internet.
Neste ponto já deve dar para imaginar que esse meu conhecido da internet era cego também. Um certo dia ele foi atravessar a rua com sua bengala, como fazia a mais de dez anos. Atravessou até a metade, orientando-se pelo som dos carros. A via da frente se movia, o sinal estava aberto, a via parava, o outro sinal se abria. Então ele caminhou até a metade da rua, e esperou o próximo sinal fechar. Orientando-se pelo som mais uma vez, ele achou que o sinal havia fechado e ele poderia atravessar em segurança, mas ele estava errado. Motoqueiros furaram o sinal do outro lado, o que fez ele julgar que o sinal dele estava pronto para passar, enquanto o outro, que as motos furaram, estava aberto para os veículos. Nesse erro de julgamento dele, foi atropelado por um ônibus.
Não tem como negar que o erro foi dos motoqueiros que furaram o sinal, mas em termos práticos ele teve um erro de julgamento na hora certa de atravessar, e esse erro aconteceu exclusivamente porque não enxergava. Quando escutei essa história, quase não pude acreditar. Se eu pudesse enumerar algumas coisas na vida de que tenho medo, essa com certeza estaria no top 5, ser atropelado por única e exclusivamente a uma falha de julgamento na hora correta de atravessar a rua. Muitos perguntariam – mas você não tem um cão guia? Pois tenho um cão guia, um bando de amigos, e um par de vezes que preciso sair por aí sem nenhum deles ao meu lado, sem ninguém para olhar para os dois lados e dizer que é seguro ir em frente. E mesmo quando estou com o meu cão guia a última palavra de decisão na hora de atravessar a rua é minha. Claro que se estiver um monte de carros passando ele nunca iria me obedecer. Os cães guia são treinados para recusarem comandos que coloquem a vida do dono em risco, mas mesmo assim, eles não são perfeitos. Eles não enxergam cores, então não saberiam a hora correta de atravessar um semáforo, ou identificarem que um carro está dando seta na esquina, demonstrando a intenção para virar nessa rua.
Logicamente, estou mais protejido do que alguém que está só com uma bengala, porque meu parceiro de 4 patas tem um julgamento próprio e pode recusar algum comando meu, mas o que eu gostaria de salientar é que podem haver falhas e que a decisão da hora certa de atravessar a rua não é do cão, e sim do dono. E como eu ia dizendo, eu tenho medo de atravessar a rua. Muitas vezes quando atravesso a rua me pego pensando que um pequeno erro meu pode me custar a vida, ou ter conseqüências muito graves. O que eu poderia fazer? Ficar em casa e não andar mais por aí sozinho, é uma alternativa. Não é só uma alternativa para mim como era para o meu amigo. O que nós fizemos? Continuamos andando por aí. Talvez eu já tenha errado e nada aconteceu, mas o seu erro lhe tirou a vida. Talvez eu venha a errar e não tenha mais uma segunda chance, mas vou continuar tentando acertar até que esse dia chegue, e eu espero que não chegue nunca.
Se éramos amigos ou conhecidos, eu não sei. Mas tenho certeza que tínhamos medos parecidos, e vontades semelhantes. Você não ficou em casa. Você não deixou-se abater com isso. Você continuou tentando, deu o seu passo de independência. Eu gostaria de deixar essas palavras registradas para quem um dia as queira ler. Para quem talvez um dia tenha o mesmo medo que nós, e pense em desistir. Para quem possa olhar para sua história e usar isso como mais um pretexto para não seguir em frente. A essas pessoas, digo que devem aprender com você. Você fez o que devia ser feito, fez o que julgou ser certo para ser independente. Ficar em casa deitado em uma cama se lamuriando por conta da sua condição? Isso não era algo que você queria para si mesmo, você queria mais, e teve. O que aconteceu, com certeza, foi uma fatalidade. Coisas boas acontecem, coisas más também, por mais chavão que isso possa ser, é como é. O que quero dizer com isso é que você pode ter errado no seu julgamento na hora certa de atravessar a rua, mas acertou em todo o resto quando decidiu atravessar todas as outras da sua vida. Desistirmos de algo na perspectiva de um problema que possa acontecer, não é a maneira que eu quero continuar vivendo, e não é a maneira que você queria viver. Vou lembrar de você, e levar sua história comigo para sempre ter coragem. Porque é preciso coragem para atravessar uma rua sem olhar para os dois lados, apenas guiado por ecos esparsos.
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